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Geral | 27.08.2017 - 18h26
O alarido familiar de Léa
Última atualização: 12h39 de 28/08
O coração de Léa Spanier Leal, irmã de minha mãe, parou de bater na noite deste sábado, 26. Parecia uma "dona italiana" ela. Movida pela mesma energia da Sofia Loren naqueles papéis de dona de casa, como no belíssimo filme Una Giornata Particolare, projetado no Brasil com o título de Um Dia Muito Especial.
Viveu 89 anos. Enfrentou a dor de sepultar dois filhos e, por fim, o marido, querido tio Leal, ex-técnico do Xavante. Nos últimos dias, havia perdido a vibração de outros tempos, com que parecia comandar a vida da família enquanto secava as mãos no avental.
A última vez que a vi foi numa pizzaria em Porto Alegre, há cerca de um ano. Já se apoiava numa bengala. Mas mantinha o semblante curioso, o cenho franzido por cumplicidade a quem fitava, a mesma expectativa prestes a ouvir alguma peripécia nossa. Mesmo que fosse só mais uma bobagem nossa, os músculos de sua face se mobilizavam, por consideração.
Ela sempre foi assim, faceira, como minha mãe.
Pois aí está: ela se foi como sua irmã Flora. Em sedação, por causa da dor.
Lá se foi ela em sua jornada particular cruzar os portões do Paraíso para se encontrar com seus filhos Gastão, Nando e seu parceiro Leal, que por certo a recebeu no repouso de sua velha cadeira de balanço e palha.
Minha mãe e todos os outros, com certeza, também estavam lá, minha mãe com aquele sorriso sem malícia dela.
Cerca de uma hora antes da morte, minha irmã Fernanda me avisou pelo whatsapp: “O coração da tia continua batendo”.
Quando enfim eu soube que sossegou, minha companheira, me vendo ler a mensagem, desligou o som da televisão, como nos minutos de silêncio, em que ficamos.
Uma prima me ligou pra saber notícias.
“Precisamos nos encontrar mais, a vida é rápida”, eu disse. Ela concordou. Lamentamos não sermos mais expansivos no afeto, reservando as maiores cotas de palavras doces, beijos e abraços apenas aos bem próximos.
De repente me dei conta da importância das mulheres da família Spanier. Eram donas de casa, todas. Não punham dinheiro em casa. Mas toda a vida ao derredor sempre pareceu se organizar em torno delas e por causa delas. Juntas, formavam uma liga perfeita no encaixe, para depurar o fim das coisas ou, como em geral, para exaltar o recomeço de tudo, em plena animação.
Todas as alegrias sem medida, todos os pulsos de atenção e todos os perdões pacificadores por qualquer mal ou incompreensão sempre encontraram reservas infinitas nelas para consolar a fé vacilante dos homens, esses seres confusos, egoístas e desprotegidos.
O registro histórico do significado que algum dia cheguei a conceber para a palavra "Família" vem de um alarido composto por um coro de vozes femininas, uma algaravia que se sobrepõe a qualquer vocativo masculino. Diante desse colorido som, mesmo o silêncio eventualmente reprovador dos homens nunca teve qualquer chance.
Sempre que encontrava alguém da família, Léa recepcionava assim: “Óóóó, meu amor...”. Franzindo o cenho e enchendo os olhos de curiosidade, pronta pra ouvir a nossa última peripécia.
Adeus, tia. Muitos beijos pra todos. E um carinho especial na minha mãe.
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kafka - 28/08/2017 - 13h45
"Não punham dinheiro em casa". Frase lapidar... Sou do tempo em que as mulheres "não punham dinheiro em casa", mas esbanjavam carinho com filhos, netos e maridos. Hoje PÕEM, em alguns casos, mas vivem reclamando de tudo...Tempos que jamais voltarão...
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