Certo anoitecer, há muito, deparei-me com um mendigo ao fechar o portão da garagem. O entardecer estava lindo como em uma paisagem de Van Gogh. Pois foi neste exato momento que aquele homem mal vestido, aparentando uns 70 anos, me dirige a palavra: “Senhor, desculpe interrompê-lo, mas que tipo de grama cultiva no seu jardim? Ela é viçosa apesar da pouca luz”. “Meu caro”, respondi-lhe, ”não tenho a mínima ideia, é um senhor que vem aqui e a trata. “Fascinam-me os jardins britânicos e os fronteiros aos palácios franceses. São os mais bonitos do mundo!”
Aquela altura já estava admirado daquele pobre homem que mostrava ser algo mais do que aparentava. Perguntei-lhe: “Onde mora?” Prontamente respondeu-me, deixando-me cético quanto a sua lucidez: “Tenho duas residências nesta cidade. Uma de inverno, outra de verão.” E explicou, no seu jeito simpático de se comunicar: “No inverno, como agora, estou residindo na marquise de uma padaria… Meu quarto, cujo teto é feito de estrelas, fica muito aquecido a noite toda, pois desde cedo seus fornos crepitam como uma generosa lareira. Pela manhã, ao abrirem, cumprimento aos donos do estabelecimento. Sento-me com aprumo e não demora chega um delicioso café, pão e manteiga, depois de ter aberto o registro d’agua da esquina e lavado o rosto e as mãos”. “No verão, disse-me, ele se mudava para outra marquise. A de uma famosa sorveteria. Contou-me que o refrigério vindo das paredes refrescava seu corpo. E de vez em quando saia um sorvetinho. “Diariamente varro minhas duas frentes”.
“Mas o senhor não tem família?”, indaguei. Ele sorriu e disse-me: “Faço refeições em um restaurante onde pago um real por boa comida. Este homem calmo e sereno com quem conversa foi um tirano, um ébrio que muito envergonhou a esposa, principalmente os filhos pequenos. Então certo dia resolvi sumir e deixar minha família viver sem aquela pesada cruz, que era eu. Parti para cidade distante, de carona, com uma pequena trouxa de roupas e procurei sobreviver. Mas a saudade era tanta que fui tornando o vício da bebida um inimigo, como o causador que era, da minha desgraça. E daí em diante passei a tratar a todos com lhaneza e calor humano, e comecei a receber o mesmo em troca. Logo compreendi que poderia esconder o meu segredo. Queimei os meus documentos e tornei-me um mendigo de rua. Passados cinco ou seis anos, a família deixou de procurar-me. Não sei o que imaginam sobre minha vida… Se estou vivo ou morto. Hoje tenho dois filhos formados: a menina é médica, e o rapaz tornou-se um excelente agrônomo (mostrou-me algumas fotos de jornal amassadas e sem legendas, onde seus filhos apareciam.) Condoído, perguntei-lhe por que não voltava para casa? Ele me respondeu que jamais iria envergonhar de novo a sua família. Chamado, compreendi que era preciso despedir-me, e encerrei aquele diálogo inusitado, perguntando ao pobre homem se necessitava de algo.
“Não meu caro, precisava apenas conversar um pouco. Hoje, o senhor ouvindo-me e dialogando comigo, não imagina o quanto me tornou feliz. Sou sozinho por opção. Há anos que vago, inserido nesta paisagem humana maravilhosa que a gente aprende a despertar nas pessoas. Tenho tudo o que necessito. “Bem, meu caro senhor, já tomei demais o seu tempo e falei muito. Obrigado por me ouvir.”
“O que vai fazer hoje, por exemplo?” indaguei, curioso àquele homem que se mostrava feliz, apesar de sua pobreza. ”Caminhar, meu amigo; e vou andar até me recolher. Talvez vá no calçadão assistir ao Jornal Nacional em uma vitrine. Boa noite, e muito prazer em conhecê-lo.”
Fiquei olhando aquele homem indo- não sei para onde- embora imaginasse qual era o seu destino naquela e em todas as noites de sua vida. Ele foi sumindo até se perder na rua, mas deixando comigo coisas para ficar pensando antes de conciliar o sono. Ao se aproximar minha mulher, perguntou-me: ”Estiveste chorando?” Não pude responder nada, só estreitei-a nos braços, acolhendo os três filhos menores que se acercaram correndo, abraçando-nos.
O escritor e jornalista Luiz Carlos Freitas autografa na próxima quinta-feira (30), a partir das 18, na Livraria Mundial, seu novo romance: Confissões de um cadáver adiado. Freitas mergulhou no trabalho durante um ano até bater o ponto final.
O romance tem como ponto de partida e chegada a própria vida do autor, que sobreviveu a uma sentença que parecia de morte.
O prefácio fala por si:
Realidade e ficção na hora da morte Amém!
Sou filho do povo pobre e escravizado, a literatura me libertou e salvou. Perambulei por aqui e ali, encontrei guarida, força e sobrevivência financeira no jornalismo, oásis e alegria no ofício de escrever romances de cunho social, em paralelo, nas horas roubadas ao lazer e ao convívio familiar. Escrever me bastava, ser famoso e ganhar dinheiro não me atraia – expulsar fantasmas íntimos era o objetivo. Até que, no final de abril de 2011, ocorreu o que eu previa desde quando perdi meu pai, em 1973, aos 43 anos, vitimado por câncer no estômago e metástase no fígado.
Eu trabalhava na conclusão do romance MoriMundo e, em função de desconforto gástrico, fui me consultar. Desconfiança do médico, endoscopia, diagnóstico de enfermidade anunciada: tumor maligno de 2,5 cm (a mesma doença paterna) no Piloro (parte do estômago). Solução? Cirurgia. Pra ontem! Fui operado dia 13 de maio de 2011. Tudo certo! Extraíram o tumor e parte do estômago – deram-me como curado. Milagrosamente. Sem metástases. Tirei o prêmio da Mega Sena. Hurras! Vivas! Safei-me. Em julho dispensei o auxílio-saúde do INSS, voltei ao trabalho e à conclusão do MoriMundo, com a responsa de retornar a consultar-me com o oncologista em novembro, já com a tomografia em mãos.
Terminei o livro e o publiquei em setembro daquele ano. Ufa! Em novembro fiz a “Tomo” e me apresentei ao médico, pacificado, tranquilo, sem nada a temer. Choque! De alta voltagem! O cara leu o laudo do exame e me disse na lata: Problemas! Novo tumor no estômago, outro no pâncreas, um terceiro no baço e necrose no fígado. Puta… Balancei. No pâncreas! Tremi, me senti mal, meu mundo caiu, pensei: É o fim, prezado Freitas. Deu pra ti, camarada! O que temia há 40 anos se tornou realidade. Dei um tempo. Recuperei-me. E perguntei ao oncologista: Quanto tempo de vida? Entre seis meses e dois anos! Respondeu na hora, insensível e habituado às dores alheias. O que devo fazer? Extirpar os tumores por meio de cirurgia, a fim, talvez, de prolongar a vida, respondeu: Tchau e benção!
Dei entrada ao hospital dia 1º de janeiro de 2012, com cirurgia marcada para a manhã seguinte. No íntimo se digladiavam a esperança, a desesperança, o medo e um vago sentimento de aceitação do inevitável. Fiquei novehoras na mesa de cirurgia. Extraíram o tumor e o que restava do estômago, a cauda e a cabeça do pâncreas, o baço, e rasparam a necrose do fígado. Acordei e percebi que continuava no mundo dos vivos. Por pouco tempo. Deu rolo. Intercorrências nas cirurgias. Abriram-me mais cinco vezes consecutivas e instalaram um dreno no fígado para filtrar o excesso de bílis. Fui indo, dois, três dias… Bactéria estava à toa na vida e decidiu infectar-me.
Peguei infecção hospitalar das bravas. Dê-lhe litros de antibiótico e parará. A coisa piorou, choque séptico, falência de órgãos múltiplos… Adeus mundo! Quinze dias em coma! Caixão e sepultura prontos, família conformada, médicos nem aí para mais um caso perdido (aqui é força de expressão, “licença poética”). Acordei! Vi três rostos em forma de santa – não lembro a ordem: minha mãe, minha companheira, minha irmã caçula. Acordei do coma para espanto geral – milagre! –, permaneci três meses no hospital, perdi 30 quilos, voltei pra casa – milagre! A enfermidade foi superada, estou limpo há 11 anos e 25 dias, completados hoje, 26 de setembro de 2023. Não tenho estômago, partes do pâncreas, o baço, a vesícula, a aparência e a energia de outrora…
Nesses quase 12 anos de recuperação física e mental, ganhei sobrevida, 15 quilos (meu peso oscila entre 52 e 55 Kg), paz, tranquilidade, tempo para escrever, certa lucidez, aposentadoria por invalidez, uma coluna política três vezes por semana no centenário Diário Popular (desde 2014 até dezembro de 2020), e uma vida praticamente normal – sem sequelas graves. Ainda que sobre mim paire a sombra do medo da recidiva. Entre 2014 e 2015 escrevi o romance Homo Perturbatus, publicado em 2016, reeditei Amáveis inimigos íntimos, em 2017, Odeio muito tudo isso, em 2019, e publiquei o romance Ninguém em 2020. Enquanto isso, Confissões de um cadáver adiado maturava na mente e no espírito, à minha revelia, esperando o momento certo para vir à luz. Comecei a escrevê-lo em maio de 2022, após necessária visita à aldeia Campelo, no Norte de Portugal, onde nasceram meus avôs paternos. Concluí a obra em março de 2023. Foi doloroso reabrir velhas feridas, descobrir outras, furtivas. Às vezes, chorava e lamentava meus erros, geralmente a melancolia, a nostalgia e a culpa ditaram o ritmo e as palavras. Fui em frente!
Confissões de um cadáver adiado não é um manual de superação da enfermidade – longe disso. Mas é testemunho inequívoco de que o diagnóstico de câncer – mesmo os considerados irremediáveis – já não é sinônimo de finitude. Tampouco tem a pretensão de “colonizar” o outro, como diz Saramago. O objetivo da obra é compartilhar experiências, plantar esperança, mostrar a ambiguidade, a imperfeição e a mesquinhez do ser. Há outros. Diversos. Descubra-os!
Samuel (Samuel Theis) é encontrado morto na neve do lado de fora do chalé isolado onde morava com sua esposa Sandra (Sandra Hüller), uma escritora alemã, e seu filho Daniel (Milo Machado Graner), de 11 anos, com deficiência visual. A investigação conclui se tratar de uma “morte suspeita”, pois é impossível saber ao certo se ele tirou a própria vida ou se foi assassinado. Sandra é indiciada e acompanhamos seu julgamento que expõe o relacionamento do casal. Entre o julgamento e a vida familiar, as dúvidas pesam sobre a relação da mãe com seu filho.
Com um começo instigante, Anatomia de uma Queda coloca dúvidas na cabeça do espectador: Samuel caiu acidentalmente do chalé ou cometeu suicídio? Ou será que foi empurrado por Sandra? Ao longo de 2h e meia, o filme desenvolve sua narrativa sem pressa e de forma complexa, focada nos diálogos. A primeira parte explora a investigação e a reconstituição da morte de Samuel, enquanto que na segunda temos o julgamento, com Sandra suspeita e acusada do assassinato do marido, tendo que provar sua inocência com ajuda de Maître Vincent Renzi (Swann Arlaud).
A diretora Justine Triet acerta em cheio ao trabalhar com diferentes versões, sem nunca apresentar uma verdade definitiva e nem respostas prontas. O roteiro de Triet e Arthur Harari, seu marido na vida real, foi uma colaboração perfeita ao explorar a intimidade do casal e a relação, muitas vezes abusiva, entre eles.
Em uma das grandes atuações do ano, Sandra Hüller tem uma performance poderosa. Falando em inglês, com dificuldade em francês e sem poder falar em sua língua materna, ela passa por todas as nuances de sua personagem e, ao lado do jovem Milo Machado Graner, conferem à narrativa uma profundidade impressionante.
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e forte candidato ao Oscar, Anatomia de uma Queda é um angustiante estudo de personagens que desvenda as complexidades das relações humanas.