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Cultura e entretenimento

Nascer em Pelotas. Por Luiz Carlos Marques Pinheiro

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Conheci Luiz Carlos Marques Pinheiro há uns 10 anos. Ele me disse que escrevia crônicas sobre Pelotas, memórias do tempo em que viveu aqui. Na época, já há quase 50 anos morando em São Paulo capital, ele não esquecia Pelotas, para aqui sempre viajava para rever parentes e mergulhar na atmosfera da cidade. Amava sua terra Natal. Nesta semana, um primo dele, Francisco de Paula Marques Rodrigues, me contou que Luiz havia falecido e deixara um acervo de crônicas sobre a cidade – que ele, Francisco, considerava que merecia ser mais amplamente divulgado. Interessei-me em publicar, o que, com autorização de Francisco e das filhas de Luiz, farei semanalmente, uma crônica por vez. (RSA)

Luiz Carlos e esposa,
Luiz Carlos e a esposa, Suzana

Por Luiz Carlos Marques Pinheiro (*)

Ano 1940. Quem nasceu em Pelotas nessa época, como eu, pode se considerar um privilegiado.

Nasceu na maior cidade do Rio Grande do Sul, depois de Porto Alegre. Era a 2ª maior economia do Estado. E isso porque se permitiu, porque já fora a primeira, até meados dos anos 20. Pelotas tinha sido mais importante que Porto Alegre.

Mas mesmo sendo a segunda, os pelotenses sempre se consideraram superiores, em cultura e socialmente, aos porto-alegrenses.

Isso porque Pelotas foi um importante polo cultural desde o início do século XIX.

Pelotas era respeitada em todo o Estado pela sua cultura secular e pelo cultivo às Artes. Era invejada pelos seus teatros e pelas companhias teatrais que se apresentavam na cidade, muitas delas vindas do Rio de Janeiro. Pelos cuidados com a preservação do seu patrimônio histórico. Pela educação social da sua população.

“Pelotas assume, porém, a qualidade de polo teatral gaúcho com a construção do Theatro Sete de Abril, em 1833 – um ano após a construção do Theatro Pelotense – com o projeto do alemão Eduardo Von Kretschmar e construção de José Vieira Viana; perdendo novamente a posição de principal cidade de maior visibilidade teatral para a capital, em 1858, com a inauguração do Theatro São Pedro.” (Atividades teatrais no Rio Grande do Sul no período entre 1800 1950 – BARROS, Graziele Soares de – Acadêmica Teatro – Licenciatura/UFPEL; SCHINDEL, Fernanda de Castro – Acadêmica Teatro – Licenciatura/UFPEL; Orientação: FERREIRA, Taís – Professor Assistente – CeArte/UFPEL.)

Outros textos de Luiz Carlos Marques Pinheiro

Em 1918 já tinha sido fundado o Conservatório de Música de Pelotas, tal o respeito às Artes.

A população se orgulhava dessas características, e as preservava.

Em 1940, Pelotas já era uma cidade de porte, com uma população de 100 mil habitantes. Já havia duas Faculdades.

Pelotas era solene. Os enterros eram solenes, feitos em carruagens abertas do tempo do Império, puxadas por até seis cavalos cobertos com capas pretas de veludo, bordadas em dourado, e penachos pretos na cabeça dos cavalos. O cocheiro usava fraque e cartola. E atrás do carro fúnebre seguia o cortejo de carros. Os primeiros carros atrás da carruagem eram Fordecos de capota arriada, carregados de flores e “corbeilles”.

Nascer em Pelotas significava conhecer a sua história. Conservar e reproduzir o comportamento e a postura dos seus antepassados e repassá-los íntegros à geração seguinte.

Uma componente muito forte dessas tradições era o sentimento de Família. Se for do mesmo sangue, é da família.

Os meus avós paternos eram ambos provenientes de famílias tradicionais de Pelotas, portanto fiéis a essas tradições. A minha avó paterna tinha vários irmãos e irmãs. Uma delas morava no Rio de Janeiro, casada com um Almirante da Marinha. Tinha uma filha e três netas, nascidas no Rio, primas em segundo grau do meu pai.

Embora sendo cariocas e primas em segundo grau, elas vinham a Pelotas visitar a família e comprar pessegada.

Uma outra irmã da minha avó, solteirona, morava em Porto Alegre com quatro sobrinhos, cujas mães, suas irmãs, tinham morrido. Um sobrinho, Professor de Engenharia da URGS e três sobrinhas. Todos solteirões. Moravam em Moinhos de Vento, no topo de uma elevação. Um palacete assobradado, enorme, tipo “casa do terror” dos filmes. Se subia uns quinze degraus de pedra para chegar na casa. Eu estudava em Porto Alegre, no Júlio de Castilhos, e morava a uns duzentos metros deles.

Pois bem, aos domingos eu ia almoçar com eles … porque eram primos do meu pai. A minha tia-avó me chamava de “meu filho”.

O meu pai tinha umas primas distantes em Pelotas, muito carolas, tanto que moravam em frente à Catedral. Quase não se visitavam. Mas quando elas ficaram sabendo que eu havia entrado no Pelotense, caíram de pau em cima do meu pai. Elas não admitiam que alguém “da família” estudasse no Pelotense, um colégio maçom. Esse sentimento de família se propagava de geração em geração.

Deve ser chamada a atenção para o fato de que Pelotas era vivenciada intensamente.

Era sensível a presença da cidade na consciência das pessoas. As pessoas tinham consciência de que “nasceram em Pelotas”. Ninguém precisava dizer. Estava presente no seu íntimo.

Os bons modos do dia-a-dia eram transmitidos, em casa, de mãe para filho/a. O pai pouco participava da criação e educação dos filhos. O pai trabalhava e sustentava a casa. E botava a comida na mesa, que era como se dizia. E contava as histórias dos antepassados.

Em casa se aprendia como conviver com as pessoas, como respeitar os mais velhos, a dar “bom-dia” e “boa-tarde”, e a dizer “muito obrigado”. Se aprendia como sentar à mesa e como comer de garfo e faca. A lavar as mãos antes das refeições. A escovar os dentes depois das refeições. Ou seja, os princípios mais comezinhos de uma boa educação.

Se aprendia, também, a tomar banho todos os dias, a andar sempre bem arrumado, com a roupa em ordem e limpa. Se aprendia que no inverno, todas as manhãs, a primeira coisa a fazer era cada um esvaziar o seu penico. E quem ia ao banheiro puxava a descarga. Se aprendia que aos domingos, a primeira coisa a fazer é ir à missa.

“Aos domingos, missa na matriz
Da cidadezinha onde eu nasci
Ai, meu Deus, eu era tão feliz
No meu pequenino Miraí.

Pelotas sempre foi uma cidade muita católica e com muito respeito à religião. As procissões em Pelotas reuniam quase a metade da população. Os mais fanáticos andavam todo o trajeto de pés descalços. E faziam revezamento para carregar o “andor”. Muitas mães vestiam os filhos com vestimenta dos santos. Um ano eu saí vestido de São Francisco de Paula … de sandália franciscana e tudo. Num outro ano, de Menino Jesus.

Em casa, havia hora para tudo. Hora para levantar; hora para estudar; hora para brincar; hora de comer e hora de dormir. E antes de dormir, rezar.

Para os homens em Pelotas, inclusive para os meninos, o uso do terno e gravata sempre foi uma coisa natural, como respirar.

Mas isso tinha um preço. O pelotense era gozado pelo restante da população do RGSul por ser um povo “metido a besta”. Mesmo no Rio de Janeiro, cidade com a qual Pelotas tinha muito contato, já tinha chegado essa fama.

Quando se originou o boato de que o pelotense era “b…”, nada mais foi do que a decorrência natural desse modo de ser, que os outros achavam muito afetado, muito “delicado”, fora de moda (“demodée”). “O pelotense é b…!”

Na realidade, o pelotense nunca ligou pra isso, nunca se incomodou. Sempre deu risada. O pelotense sabe que nada mais é do que despeito de “gaúcho grosso”. Aliás, em Pelotas ninguém tem paciência pra aguentar gaúcho grosso. O pelotense acha, e sempre achou, que quem está certo é o carioca, que sabe viver. O pelotense nunca deu
importância à Porto Alegre. O Rio, sim, isso é que é vida!

Visto hoje, com olhos bastante críticos, Pelotas, nesse época, podia realmente ser considerada de uma forma sofisticada como “rempli de soi même”. Pelotas se bastava. Não tomava conhecimento de Rio Grande, nem de Porto Alegre. Vivia a “sua” vida e se bastava. Esse isolamento nunca trouxe prejuízo para Pelotas, porque Pelotas nunca perdeu a sua referência: O Rio de Janeiro.

Mas mesmo com toda essa pompa, a gente não nascia em hospital. Nascia em casa. E quem fazia o parto não era um médico, mas uma parteira “prática”.

As parteiras, nessa época, não faziam qualquer tipo de curso, porque não existia em Pelotas. Eram formadas na vida. E a minha se chamava “Mãe Gorda”. Ela deve ter feito a metade dos partos de Pelotas dessa época.

Em São Paulo, entretanto, em 1912 já tinha sido aberta a Escola de Parteiras da Maternidade de São Paulo.

As parteiras acompanhavam as mulheres desde o inicio da gravidez e davam orientação sobre como proceder. No momento do parto, porém, eram as mulheres que escolhiam a posição anatômica em que queriam parir e os familiares participavam junto à parturiente nesse processo.

E a parteira somente ajudava a criança a nascer, dava o primeiro banho e fazia a assepsia.

As mães de primeiro filho, inexperientes, recebiam toda a orientação das suas mães, já calejadas. E tudo corria bem. A família inteira acompanhava e se unia pra ajudar.

O trabalho “A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DAS POLÍTICAS DE ATENÇÃO AO PARTO
NO BRASIL: UMA REVISÃO INTEGRATIVA”, de Greice Carvalho de Matos1, Ana
Paula Escobal2, Marilu Correa Soares3, Jenifer Härter4, Roxana Isabel Cardozo
Gonzales, informa que “No Brasil, as primeiras preocupações com a saúde
materno-infantil deram-se durante a transição do Estado Novo até o
Regime Militar.

Em 1940, foi implantado o Departamento Nacional da Criança, cujo objetivo foi a normatização do atendimento a criança e o combate à mortalidade infantil”.

O menino criado em Pelotas aprendia desde cedo a usar gravata, às vezes borboleta. Já desde os 4 anos eu usava gravata. Calça curta, meias até o joelho, e gravata. Com 4 anos eu já ia à missa na Catedral, aos domingos, de gravata.

A calça curta, muitas vezes com paletó e meias compridas, era um complemento obrigatório, em Pelotas, para os meninos. E suspensórios. Podia ser considerado, até um uniforme: calça curta, camisa de manga curta, meias compridas, suspensórios e gravata. E pode bater a fotografia…Quantas eu tenho, assim!… Como recordação, o fotógrafo fazia um polifoto.

“Eu daria tudo que eu tivesse
Pra voltar aos dias de criança
Eu não sei pra que que a gente cresce
Se não sai da gente essa lembrança”

A alfabetização era feita em casa, com a mãe. Era uma coisa natural. Todas as mães faziam isso. Bem ou mal, toda criança aprendia a ler em casa … e a escrever com letra de fôrma. Mas sempre havia uma vizinha, normalista, que se oferecia pra ajudar.

As moças, nessa época, faziam o curso chamado “Normal”, para se tornarem professoras primárias. Era um curso de 2º grau.

Na realidade, o Curso Normal tinha o objetivo de formar professores para atuarem no magistério de ensino primário e era oferecido em cursos públicos de nível secundário (hoje Ensino Médio). O Curso Normal chegou aos anos 1940/50, como instituição pública fundamental no papel de formadora dos quadros docentes para o ensino primário em todo o país.

Felizmente, eu tinha uma vizinha de porta que era normalista (Clélia Guedes, a quem eu sou imensamente agradecido e reconhecido até hoje). E ela me preparou – e muito bem preparado – para entrar no 3º Ano Primário no Colégio São Francisco de Assis, em 1948.

“Que saudade da professorinha
Que me ensinou o beabá
Onde andará Mariazinha
Meu primeiro amor, onde andará?”

Todas as casas tinham pátio. E os meninos passavam a parte da manhã no quintal.

Interessante esse costume. As crianças não brincavam na rua na parte da manhã; só à tarde. Como as casas tinham quintal, tinham árvores frutíferas. E tinham galinheiro. Se passava a manhã no quintal comendo fruta, dando milho pras galinhas, recolhendo os ovos, jogando bola de gude na terra, sozinho. Às vezes se fazia arapuca, com lascas de bambu, para tentar pegar passarinho no quintal. À tarde, depois da sesta (obrigatória), era permitido brincar na rua de pegador, jogar bola de gude, soltar pandorga, até começar a escurecer.

“Eu igual a toda meninada
Quanta travessura que eu fazia
Jogo de botões sobre a calçada
Eu era feliz e não sabia…”
(Meus Tempos de Criança -Ataulfo Alves)

Ataulfo Alves revela nesses versos que mesmo uma cidadezinha do interior de Minas como Miraí conservava as suas tradições, isso na década de ’30.

O banho era tomado depois das brincadeiras de rua. Banho, jantar … e cama. Não tinha televisão. Usos e costumes…

Quando eu era guri, em Pelotas, existia um modo de vida muito interessante e curioso.

Havia um conceito de “quadra” (quarteirão) em que cada um morava. As pessoas de uma quadra conheciam a localização de cada casa da sua quadra, quem morava aonde etc. Sabiam os nomes de cada um. Conheciam a sequência das casas na sua quadra, tanto da sua calçada quanto da calçada em frente. O conceito de “vizinho” era muito forte.

Da quadra seguinte, porém, tanto pra direita quanto pra esquerda, não se conhecia ninguém. Era como se a sua vida na cidade se resumisse apenas à “sua quadra”.

Vizinhos eram somente os moradores da sua quadra.

O conjunto dos quarteirões mais próximos à sua casa era chamado de “zona” (“Lá na minha zona…”)

Entretanto, é de louvar-se a solidariedade que existia entre os moradores da mesma quadra. Todos estavam sempre dispostos a ajudar num momento de necessidade (os mineiros dizem “de precisão”). Não importava quão distante estivesse da sua casa. Se era da mesma quadra, era vizinho. Com frequência eu ouvia as mulheres se tratando, não pelo nome, mas por “vizinha”.

Porém, há que se acrescentar um detalhe muito interessante. A gente somente se dá conta dessa realidade quando se sai de Pelotas definitivamente.

Olhando para o passado, enquanto eu estava vivendo em Pelotas, a gente não conscientizava que em Pelotas se pensava e se vivia assim.

É preciso ser visto com olhos de fora.

Eu acredito até que, hoje, os pelotenses não tenham a menor ideia de que essas tradições existiram, mas continuam copiando o modelo de comportamento e de postura que receberam em casa, o que nada mais é do que reproduzir as antigas tradições.

(*) Luiz Carlos Marques Pinheiro nasceu em Pelotas, em 12/01/1940, onde estudou nos colégios São Francisco e Pelotense. Em 1961, foi trabalhar em São Paulo, onde se casou alguns anos depois com Suzana do Couto Rosa Pinheiro, tendo duas filhas: Beatriz e Izabel (na foto, com o pai). Formou-se em Direito na Faculdade São Francisco, desempenhando atividades profissionais em várias empresas, destacando-se o Banco Bandeirantes, onde foi diretor de marketing. Faleceu em São Paulo, em 16/12/2021. Embora morando há 60 anos fora, ele adorava Pelotas e tinha um blog sobre a cidade.

Cultura e entretenimento

Luiz Carlos Freitas lança novo romance: Confissões de um cadáver adiado

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O escritor e jornalista Luiz Carlos Freitas autografa na próxima quinta-feira (30), a partir das 18, na Livraria Mundial, seu novo romance: Confissões de um cadáver adiado. Freitas mergulhou no trabalho durante um ano até bater o ponto final.

O romance tem como ponto de partida e chegada a própria vida do autor, que sobreviveu a uma sentença que parecia de morte.

O prefácio fala por si:

Realidade e ficção na hora da morte Amém!

Sou filho do povo pobre e escravizado, a literatura me libertou e salvou. Perambulei por aqui e ali, encontrei guarida, força e sobrevivência financeira no jornalismo, oásis e alegria no ofício de escrever romances de cunho social, em paralelo, nas horas roubadas ao lazer e ao convívio familiar. Escrever me bastava, ser famoso e ganhar dinheiro não me atraia – expulsar fantasmas íntimos era o objetivo. Até que, no final de abril de 2011, ocorreu o que eu previa desde quando perdi meu pai, em 1973, aos 43 anos, vitimado por câncer no estômago e metástase no fígado.

Eu trabalhava na conclusão do romance MoriMundo e, em função de desconforto gástrico, fui me consultar. Desconfiança do médico, endoscopia, diagnóstico de enfermidade anunciada: tumor maligno de 2,5 cm (a mesma doença paterna) no Piloro (parte do estômago). Solução? Cirurgia. Pra ontem! Fui operado dia 13 de maio de 2011. Tudo certo! Extraíram o tumor e parte do estômago – deram-me como curado. Milagrosamente. Sem metástases. Tirei o prêmio da Mega Sena. Hurras! Vivas! Safei-me. Em julho dispensei o auxílio-saúde do INSS, voltei ao trabalho e à conclusão do MoriMundo, com a responsa de retornar a consultar-me com o oncologista em novembro, já com a tomografia em mãos.

Terminei o livro e o publiquei em setembro daquele ano. Ufa! Em novembro fiz a “Tomo” e me apresentei ao médico, pacificado, tranquilo, sem nada a temer. Choque! De alta voltagem! O cara leu o laudo do exame e me disse na lata: Problemas! Novo tumor no estômago, outro no pâncreas, um terceiro no baço e necrose no fígado. Puta… Balancei. No pâncreas! Tremi, me senti mal, meu mundo caiu, pensei: É o fim, prezado Freitas. Deu pra ti, camarada! O que temia há 40 anos se tornou realidade. Dei um tempo. Recuperei-me. E perguntei ao oncologista: Quanto tempo de vida? Entre seis meses e dois anos! Respondeu na hora, insensível e habituado às dores alheias. O que devo fazer? Extirpar os tumores por meio de cirurgia, a fim, talvez, de prolongar a vida, respondeu: Tchau e benção!

Dei entrada ao hospital dia 1º de janeiro de 2012, com cirurgia marcada para a manhã seguinte. No íntimo se digladiavam a esperança, a desesperança, o medo e um vago sentimento de aceitação do inevitável. Fiquei novehoras na mesa de cirurgia. Extraíram o tumor e o que restava do estômago, a cauda e a cabeça do pâncreas, o baço, e rasparam a necrose do fígado. Acordei e percebi que continuava no mundo dos vivos. Por pouco tempo. Deu rolo. Intercorrências nas cirurgias. Abriram-me mais cinco vezes consecutivas e instalaram um dreno no fígado para filtrar o excesso de bílis. Fui indo, dois, três dias… Bactéria estava à toa na vida e decidiu infectar-me.

Peguei infecção hospitalar das bravas. Dê-lhe litros de antibiótico e parará. A coisa piorou, choque séptico, falência de órgãos múltiplos… Adeus mundo! Quinze dias em coma! Caixão e sepultura prontos, família conformada, médicos nem aí para mais um caso perdido (aqui é força de expressão, “licença poética”). Acordei! Vi três rostos em forma de santa – não lembro a ordem: minha mãe, minha companheira, minha irmã caçula. Acordei do coma para espanto geral – milagre! –, permaneci três meses no hospital, perdi 30 quilos, voltei pra casa – milagre! A enfermidade foi superada, estou limpo  há 11 anos e 25 dias, completados hoje, 26 de setembro de 2023. Não tenho estômago, partes do pâncreas, o baço, a vesícula, a aparência e a energia de outrora…

Nesses quase 12 anos de recuperação física e mental, ganhei sobrevida, 15 quilos (meu peso oscila entre 52 e 55 Kg), paz, tranquilidade, tempo para escrever, certa lucidez, aposentadoria por invalidez, uma coluna política três vezes por semana no centenário Diário Popular (desde 2014 até dezembro de 2020), e uma vida praticamente normal – sem sequelas graves. Ainda que sobre mim paire a sombra do medo da recidiva. Entre 2014 e 2015 escrevi o romance Homo Perturbatus, publicado em 2016, reeditei Amáveis inimigos íntimos, em 2017, Odeio muito tudo isso, em 2019, e publiquei o romance Ninguém em 2020. Enquanto isso, Confissões de um cadáver adiado maturava na mente e no espírito, à minha revelia, esperando o momento certo para vir à luz. Comecei a escrevê-lo em maio de 2022, após necessária visita à aldeia Campelo, no Norte de Portugal, onde nasceram meus avôs paternos. Concluí a obra em março de 2023. Foi doloroso reabrir velhas feridas, descobrir outras, furtivas. Às vezes, chorava e lamentava meus erros, geralmente a melancolia, a nostalgia e a culpa ditaram o ritmo e as palavras. Fui em frente!

Confissões de um cadáver adiado não é um manual de superação da enfermidade – longe disso. Mas é testemunho inequívoco de que o diagnóstico de câncer – mesmo os considerados irremediáveis – já não é sinônimo de finitude. Tampouco tem a pretensão de “colonizar” o outro, como diz Saramago. O objetivo da obra é compartilhar experiências, plantar esperança, mostrar a ambiguidade, a imperfeição e a mesquinhez do ser. Há outros. Diversos.  Descubra-os!

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Anatomia de uma queda, o vencedor da Palma de Ouro. Por Déborah Schmidt

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 Samuel (Samuel Theis) é encontrado morto na neve do lado de fora do chalé isolado onde morava com sua esposa Sandra (Sandra Hüller), uma escritora alemã, e seu filho Daniel (Milo Machado Graner), de 11 anos, com deficiência visual. A investigação conclui se tratar de uma “morte suspeita”, pois é impossível saber ao certo se ele tirou a própria vida ou se foi assassinado. Sandra é indiciada e acompanhamos seu julgamento que expõe o relacionamento do casal. Entre o julgamento e a vida familiar, as dúvidas pesam sobre a relação da mãe com seu filho.

Com um começo instigante, Anatomia de uma Queda coloca dúvidas na cabeça do espectador: Samuel caiu acidentalmente do chalé ou cometeu suicídio? Ou será que foi empurrado por Sandra? Ao longo de 2h e meia, o filme desenvolve sua narrativa sem pressa e de forma complexa, focada nos diálogos. A primeira parte explora a investigação e a reconstituição da morte de Samuel, enquanto que na segunda temos o julgamento, com Sandra suspeita e acusada do assassinato do marido, tendo que provar sua inocência com ajuda de Maître Vincent Renzi (Swann Arlaud).

A diretora Justine Triet acerta em cheio ao trabalhar com diferentes versões, sem nunca apresentar uma verdade definitiva e nem respostas prontas. O roteiro de Triet e Arthur Harari, seu marido na vida real, foi uma colaboração perfeita ao explorar a intimidade do casal e a relação, muitas vezes abusiva, entre eles.

Em uma das grandes atuações do ano, Sandra Hüller tem uma performance poderosa. Falando em inglês, com dificuldade em francês e sem poder falar em sua língua materna, ela passa por todas as nuances de sua personagem e, ao lado do jovem Milo Machado Graner, conferem à narrativa uma profundidade impressionante.

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e forte candidato ao Oscar, Anatomia de uma Queda é um angustiante estudo de personagens que desvenda as complexidades das relações humanas.

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