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Cultura e entretenimento

Adeus, verão: memórias do Laranjal

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Agora que o verão se foi, a praia do Laranjal atinge a beleza perfeita, ideal para mim. Fins de verões são sempre um pouco tristes. O verão é uma estação jovial. É a estação do corpo, das exuberâncias, dos mergulhos sensoriais, das expectativas e das promessas. Quando terminam, sentimos como se um encanto qualquer tivesse se desfeito.

Já não veraneio. Quase não vou ali nos meses de calor. Hoje em dia gosto do Laranjal quando não há tanta gente.

Nos marços, quando o verão fecha, e reflui a agitação, gosto de andar pela orla, apreciar o marulho das ondas, o vento nas árvores, a natureza recuperada de toda ebulição, em favor de si e do silêncio; adentro por ruazinhas de terra, afundo os pés em poças de água morna, para sentir a lama se infiltrando entre os dedos, como na infância. Esse, o percurso: água platinada rebrilhando lá pelas 10h, presença escassa de pessoas na praia, natureza de novo no comando, ruas praticamente vazias, uma poça eventual para me ressentir criança, e o passo retomado para deparar com belas composições naturais. Numa das ruas, como noutro dia, com duas árvores tocando-se pelas copas, formando um tipo de portal.

Fui feliz no Laranjal, no tempo em que as lembranças marcam mais.

Lembro dos engradados de madeira com refrigerantes sortidos (mirinda, pepsi, teen…) que o pai trazia da cidade para abastecer a despensa. Essas garrafas, que tilintavam ao chegar, saíam da geladeira em um desfile sem fim, fazendo pensar que a vida era generosa e que a generosidade nunca teria fim. Essa grande geladeira, antiga, ficou-me igualmente gravada. Para abri-la, era preciso puxar contra o corpo um trinco de metal igual às palancas daquelas máquinas de azar que puxam com esperança nos cassinos, em que imagens com figurinhas giram e giram e giram e, de repente, começam a parar, uma depois da outra, e com sorte – quando param idênticas – se ganha um prêmio.

Lembro de picolés artesanais saídos de forminhas verdes de plástico que a mãe preparava e que a gente comia presos a um palito branco, também feito de plástico, ou então na forma de pequenos cubos congelados em uma fôrma de alumínio dividida, no interior, por um gradil, cujo sabor superava qualquer produção industrial de gelados, e fazia pensar que de nada mais precisávamos que o trabalho manual e a boa vontade não resolvessem.

Lembro dos hoje desaparecidos vaga-lumes. Eles reluziam na noite, dançando no ar ao som do coaxar dos sapos nas valetas. De vez em quando, meu pai catava um vaga-lume entre as mãos e o prendia sob um copo emborcado na cozinha, para que, no escuro, admirássemos o acender e o apagar de sua luzinha. Depois, enquanto dormíamos, ele substituía o vaga-lume por uma cédula de dinheiro, mutação que nos espantava de manhã, transformando-nos em capitalistas obcecados em cometer novos “crimes ambientais” nas noites que se seguiam.

Lembro de pescarias de prateadas corvinas e de translúcidos peixes-rei que fisgávamos em varinhas precárias e boias de rolha, sobre um cavalete de quatro pés. Levávamos o fruto do nosso esforço para casa, orgulhosos, e os peixinhos eram fritados pela mãe, para que nos sentíssemos igualmente responsáveis pela subsistência da família.

Lembro de um anzol atravessado no meu pé, um anzol perdido na orla, e de meu pai me carregando nos ombros, em meio à poeira das ruas, até o posto de saúde, e do rastro de sangue na terra, ficando para trás.

Lembro de longas partidas de cartas e dominós na cozinha da casa, onde, abrindo-se a mesa das refeições do dia, da tarde e da noite, tínhamos um campo de futebol riscado à caneta na madeira, para os jogos de botão, e que às vezes era utilizada para suados embates de pingue-pongue: qualquer resultado era sentido como vitória.

Lembro do vento forte que soprava da praia nas caminhadas noturnas para o Praia Sete, peregrinando em meio a nuvens de poeira e grãos, fustigados pelo vento que varria a areia, vindo lá do fundo da laguna. E lembro que, ao chegar ao destino, ensaiávamos os primeiros namoros e os primeiros beijos.

São recordações vívidas. Arrebatantes. Como quando a rolha tiritava, ameaçando afundar, enfim afundava, puxávamos o caniço e retirávamos da água um peixe. O tipo de emoção que nos faz manter a esperança em um sinal. Esperança em uma luz, que às vezes pode se apagar, como se não fosse voltar mais. Mas, se apaga, nunca some de verdade. Sempre volta, como quando caminho nos marços, por ali.

Jornalista. Editor do Amigos. Ex-funcionário do Senado Federal, do Ministério da Educação e do jornal Correio Braziliense. Prêmio Esso Regional Sul de Jornalismo. Top Blog. Autor do livro Drops de Menta. Fã de livros e filmes.

2 Comments

2 Comments

  1. Edwin

    29/03/23 at 11:37

    Uma bela crônica! Concordo que hoje o Laranjal é mais belo no outono e no inverno. Traz também muitas lembranças. O veraneio na casa de meus avós no antigo Sítio Santo Antônio, os primos, os tios…Muita gente que habita hoje a memória e os velhos álbuns de fotografias. Ler a crônica foi uma experiência agridoce, um misto de saudade, nostalgia e beleza. Obrigado!

    • Rubens Spanier Amador

      29/03/23 at 17:50

      Obrigado pelas pelavras, Edwin. Para quem escreve, é muito gratificante esse retorno. Quem sabe, uma hora dessas, não baixa um santo e as memórias das demais estações inspirem um outro texto. Um grande abraço para vc. E, mais uma vez, muito obrigado.

Cultura e entretenimento

Napoleão, o filme, é belo de ver, mas tem montagem confusa. Por Déborah Schmidt

Com duas horas e meia, já foi anunciado um corte do diretor com 4 horas de duração que será exibido no streaming, o que explica os cortes na edição

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Napoleão passa por diferentes décadas da vida de Napoleão Bonaparte (Joaquin Phoenix), na turbulenta França após o fim da monarquia. Sua rápida e implacável ascensão a imperador é vista através de seu conturbado relacionamento com Josephine (Vanessa Kirby), sua esposa e verdadeiro amor.

Vindo do nada como um oficial de artilharia do exército francês durante a Revolução Francesa, o filme retrata sua jornada, até ser derrotado e exilado na ilha de Santa Helena. O longa retrata diversos momentos históricos, como a decapitação de Maria Antonieta até a invasão do Egito, quando permitiu que seus exércitos utilizassem as pirâmides de Giza como alvo para treino de pontaria.

Dirigido por Ridley Scott, responsável por produções inesquecíveis ao longo de quase 50 anos de carreira como Alien – O 8° Passageiro (1979), Blade Runner: O Caçador de Androides (1982), um dos meus filmes favoritos, Thelma & Louise (1991), Gladiador (2000), O Gângster (2007), Perdido em Marte (2015), O Último Duelo (2021) e muitos outros. O diretor constrói épicos como poucos, com grandiosas e impressionantes cenas de batalha. Em Napoleão, a ascensão e queda de Bonaparte nos altos escalões do governo francês é intercalada por importantes conflitos como o cerco de Toulon, as invasões à Rússia e a investida contra os ingleses em Waterloo.

O roteiro de David Scarpa traz um protagonista nostálgico, constantemente avaliador da própria vida, narrador de cartas sentimentais e dependente emocionalmente da esposa. Tecnicamente excelente, a fotografia de Dariusz Wolski aposta em sequências que enfatizam paisagens belíssimas e no vermelho-sangue das batalhas. Porém, o filme dilui as competentes cenas de ação em uma montagem confusa, que apresenta a vida de Napoleão de forma apressada e sem o devido contexto.

Com duas horas e meia, já foi anunciado um corte do diretor com 4 horas de duração que será exibido no streaming, o que explica os cortes na edição. Aliás, a trama foi bastante criticada no que diz respeito aos dados históricos retratados no filme, no entanto, a precisão histórica não pareceu uma preocupação para Ridley Scott. Prefiro deixar essa questão para os historiadores, meu assunto aqui é apenas o cinema.

Entre glória e fracasso, Joaquin Phoenix apresenta um homem falho e humano, que, entre estratégias brilhantes contra britânicos e russos, encontrou na esposa o relacionamento que assombrou sua vida. Afinal, o fato de Josephine não conseguir lhe dar um filho, um símbolo da continuidade de um império, desempenhou um papel fundamental na relação entre os dois. A química entre Phoenix e Vanessa Kirby é perfeita, com a atriz roubando a cena e sendo um dos grandes destaques da produção.

“França, exército e Josephine”, foram as últimas palavras proferidas por Napoleão Bonaparte antes de morrer. Possivelmente, as únicas três coisas que amou na vida. O filme faz questão de trazer essa passagem ao término de Napoleão, resumindo a produção nessas três palavras.

Em cartaz, Napoleão retrata o líder e estrategista militar com um olhar nostálgico e humanizado e, portanto, com falhas. Um épico que merece ser visto, preferencialmente, no cinema.

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Cultura e entretenimento

Luiz Carlos Freitas lança novo romance: Confissões de um cadáver adiado

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O escritor e jornalista Luiz Carlos Freitas autografa na próxima quinta-feira (30), a partir das 18, na Livraria Mundial, seu novo romance: Confissões de um cadáver adiado. Freitas mergulhou no trabalho durante um ano até bater o ponto final.

O romance tem como ponto de partida e chegada a própria vida do autor, que sobreviveu a uma sentença que parecia de morte.

O prefácio fala por si:

Realidade e ficção na hora da morte Amém!

Sou filho do povo pobre e escravizado, a literatura me libertou e salvou. Perambulei por aqui e ali, encontrei guarida, força e sobrevivência financeira no jornalismo, oásis e alegria no ofício de escrever romances de cunho social, em paralelo, nas horas roubadas ao lazer e ao convívio familiar. Escrever me bastava, ser famoso e ganhar dinheiro não me atraia – expulsar fantasmas íntimos era o objetivo. Até que, no final de abril de 2011, ocorreu o que eu previa desde quando perdi meu pai, em 1973, aos 43 anos, vitimado por câncer no estômago e metástase no fígado.

Eu trabalhava na conclusão do romance MoriMundo e, em função de desconforto gástrico, fui me consultar. Desconfiança do médico, endoscopia, diagnóstico de enfermidade anunciada: tumor maligno de 2,5 cm (a mesma doença paterna) no Piloro (parte do estômago). Solução? Cirurgia. Pra ontem! Fui operado dia 13 de maio de 2011. Tudo certo! Extraíram o tumor e parte do estômago – deram-me como curado. Milagrosamente. Sem metástases. Tirei o prêmio da Mega Sena. Hurras! Vivas! Safei-me. Em julho dispensei o auxílio-saúde do INSS, voltei ao trabalho e à conclusão do MoriMundo, com a responsa de retornar a consultar-me com o oncologista em novembro, já com a tomografia em mãos.

Terminei o livro e o publiquei em setembro daquele ano. Ufa! Em novembro fiz a “Tomo” e me apresentei ao médico, pacificado, tranquilo, sem nada a temer. Choque! De alta voltagem! O cara leu o laudo do exame e me disse na lata: Problemas! Novo tumor no estômago, outro no pâncreas, um terceiro no baço e necrose no fígado. Puta… Balancei. No pâncreas! Tremi, me senti mal, meu mundo caiu, pensei: É o fim, prezado Freitas. Deu pra ti, camarada! O que temia há 40 anos se tornou realidade. Dei um tempo. Recuperei-me. E perguntei ao oncologista: Quanto tempo de vida? Entre seis meses e dois anos! Respondeu na hora, insensível e habituado às dores alheias. O que devo fazer? Extirpar os tumores por meio de cirurgia, a fim, talvez, de prolongar a vida, respondeu: Tchau e benção!

Dei entrada ao hospital dia 1º de janeiro de 2012, com cirurgia marcada para a manhã seguinte. No íntimo se digladiavam a esperança, a desesperança, o medo e um vago sentimento de aceitação do inevitável. Fiquei novehoras na mesa de cirurgia. Extraíram o tumor e o que restava do estômago, a cauda e a cabeça do pâncreas, o baço, e rasparam a necrose do fígado. Acordei e percebi que continuava no mundo dos vivos. Por pouco tempo. Deu rolo. Intercorrências nas cirurgias. Abriram-me mais cinco vezes consecutivas e instalaram um dreno no fígado para filtrar o excesso de bílis. Fui indo, dois, três dias… Bactéria estava à toa na vida e decidiu infectar-me.

Peguei infecção hospitalar das bravas. Dê-lhe litros de antibiótico e parará. A coisa piorou, choque séptico, falência de órgãos múltiplos… Adeus mundo! Quinze dias em coma! Caixão e sepultura prontos, família conformada, médicos nem aí para mais um caso perdido (aqui é força de expressão, “licença poética”). Acordei! Vi três rostos em forma de santa – não lembro a ordem: minha mãe, minha companheira, minha irmã caçula. Acordei do coma para espanto geral – milagre! –, permaneci três meses no hospital, perdi 30 quilos, voltei pra casa – milagre! A enfermidade foi superada, estou limpo  há 11 anos e 25 dias, completados hoje, 26 de setembro de 2023. Não tenho estômago, partes do pâncreas, o baço, a vesícula, a aparência e a energia de outrora…

Nesses quase 12 anos de recuperação física e mental, ganhei sobrevida, 15 quilos (meu peso oscila entre 52 e 55 Kg), paz, tranquilidade, tempo para escrever, certa lucidez, aposentadoria por invalidez, uma coluna política três vezes por semana no centenário Diário Popular (desde 2014 até dezembro de 2020), e uma vida praticamente normal – sem sequelas graves. Ainda que sobre mim paire a sombra do medo da recidiva. Entre 2014 e 2015 escrevi o romance Homo Perturbatus, publicado em 2016, reeditei Amáveis inimigos íntimos, em 2017, Odeio muito tudo isso, em 2019, e publiquei o romance Ninguém em 2020. Enquanto isso, Confissões de um cadáver adiado maturava na mente e no espírito, à minha revelia, esperando o momento certo para vir à luz. Comecei a escrevê-lo em maio de 2022, após necessária visita à aldeia Campelo, no Norte de Portugal, onde nasceram meus avôs paternos. Concluí a obra em março de 2023. Foi doloroso reabrir velhas feridas, descobrir outras, furtivas. Às vezes, chorava e lamentava meus erros, geralmente a melancolia, a nostalgia e a culpa ditaram o ritmo e as palavras. Fui em frente!

Confissões de um cadáver adiado não é um manual de superação da enfermidade – longe disso. Mas é testemunho inequívoco de que o diagnóstico de câncer – mesmo os considerados irremediáveis – já não é sinônimo de finitude. Tampouco tem a pretensão de “colonizar” o outro, como diz Saramago. O objetivo da obra é compartilhar experiências, plantar esperança, mostrar a ambiguidade, a imperfeição e a mesquinhez do ser. Há outros. Diversos.  Descubra-os!

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