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Cultura e entretenimento

E então ele falou em Zaratustra

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Estudante de jornalismo, nos 80’ entrevistei um fotógrafo de rua em Pelotas. Entrevistar é um modo impreciso de retratar o que aconteceu. Ele era um tipo enigmático, singular.

De origem polaca ou alemã, não sei bem, magro como um filamento, vestia sempre roupas simples, senão as mesmas, sempre iguais, mas com apreço. Nada demais: terno sem gravata, tons de marrom, camisa fechada no colarinho, chapéu de feltro para proteger do sol, olhos franzidos e sorriso de dentes cerrados, feições que fazemos involuntariamente quando a claridade é intensa. Dava a impressão que todo fotógrafo dá: que só sabia fazer uma coisa na vida, fotografar. Mais nada.

Ele parecia um boneco mecânico. Passava o dia no calçadão da Andrade Neves, em frente à antiga joalheria Pinto Ferreira, empunhando uma câmera pendurada por alça no pescoço, câmera simples, mas íntegra, como sua figura. Embora adaptado, soava isolado na multidão.

Disse em cima que o entrevistei, e admiti a imprecisão. Na verdade, nós nos entrevimos por um instante. Abordei-o na rua e tentei arrancar dele, atabalhoado sem jeito com timidez, sua história pessoal, para um trabalho da faculdade. Monossilábico, ficou claro que ele queria apenas que eu desaparecesse de sua frente, para continuar com sua vida.

Gaguejante, insistindo com ele, tornei-me apenas chato, seguindo um velho mandamento de jornalistas: não temer passar por chato; cercar o entrevistado, “apertá-lo” até fazê-lo exprimir-se, como fazemos, em sucessão, com as uvas.

Por causa da minha insistência, ele se encheu e resolveu ir embora. Eu o acompanhei na retirada, e então, depois de atordoá-lo um pouco mais, numa esquina, da antiga lojas Mazza com Floriano, de repente falou uma coisa. Talvez tenha resolvido me dar algo, temendo que eu o escoltasse até em casa. Falou: “Um dia eu li o livro Assim Falou Zaratustra e minha vida ganhou sentido”.

Espantei-me. Quer dizer que aquele solitário sempre parado no mesmo lugar, sempre sorrindo mecanicamente, e de olhos franzidos, sempre à procura de pessoas para congelar em imagens fixas, eternas, lera o famoso filósofo prussiano-alemão e, ao lê-lo, encontrara um sentido para a vida?

Ele não disse mais nada e me dei por satisfeito, pois pareceu que acabara de dizer muito. Acreditei nele: afinal, ninguém despista ninguém com uma informação daquela natureza.

Deduzi que estivera perdido, angustiado com o fato de estar vivo e não encontrar resposta. Conclui que não acreditava em Deus, como Nietzsche não acreditava. Deduzi que estivera buscando Deus em vão. Foi o que me ocorreu. No livro do filósofo, com o qual eu havia tomado contato, lendo não mais que as primeiras linhas, porque me soou pesado, intricado, Nietzsche escreveu uma frase terrível para quem tem fé: “Deus está morto.”

Pensei que o polaco deixara de carecer de um pai, que dele nada mais esperava, e, desde então, passara a contar apenas consigo e um modo de viver próprio, aceito no íntimo, elaborado. Depois desse encontro, em que nos entrevimos, eu o deixei seguir seu caminho em paz, com a sensação do minerador que, depois de escavar e escavar e escavar, encontra uma reluzente pepita.

Nos dias seguintes, ele estava lá, no mesmo ponto. Seus traços rurais estampados na cara, em todos os modos, inclusive na forma educada um pouco tímida com que abordava as pessoas com seu cartão. Um homem simples, mas aprumado, com um chapéu. Vivia dessa rotina: congelar passantes em instantâneos.

Um dia sumiu e não soube mais dele.

O que me disse, porém, pareceu-me, na ocasião, a chave de sua vida. Uma chave estranha, que pareceu tudo e, ao mesmo tempo, nada. Ele teria me dado a chave, mas não revelado o segredo.

Naquele dia em que o abordei, pode ter considerado que eu merecia uma pista após perturbá-lo, e foi em frente. Talvez tenha pensado que eu merecesse uma resposta, após o esforço, como aconteceu com ele quando leu Nietzsche. Pensado que me seria útil, como a ele foi.

E assim falou em Zaratustra.

No livro, Nietzsche escreveu:

É preciso usar trovões e fogos de artifício celestes para falar com sentidos frouxos e dormentes. Mas a voz da beleza fala baixo: ela se insinua apenas nas almas mais despertas.”

Guardei a impressão de um homem fino, à sua maneira. Feito de reservas, contenções.

Jornalista. Editor do Amigos. Ex-funcionário do Senado Federal, do Ministério da Educação e do jornal Correio Braziliense. Prêmio Esso Regional Sul de Jornalismo. Top Blog. Autor do livro Drops de Menta. Fã de livros e filmes.

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Cultura e entretenimento

Napoleão, o filme, é belo de ver, mas tem montagem confusa. Por Déborah Schmidt

Com duas horas e meia, já foi anunciado um corte do diretor com 4 horas de duração que será exibido no streaming, o que explica os cortes na edição

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Napoleão passa por diferentes décadas da vida de Napoleão Bonaparte (Joaquin Phoenix), na turbulenta França após o fim da monarquia. Sua rápida e implacável ascensão a imperador é vista através de seu conturbado relacionamento com Josephine (Vanessa Kirby), sua esposa e verdadeiro amor.

Vindo do nada como um oficial de artilharia do exército francês durante a Revolução Francesa, o filme retrata sua jornada, até ser derrotado e exilado na ilha de Santa Helena. O longa retrata diversos momentos históricos, como a decapitação de Maria Antonieta até a invasão do Egito, quando permitiu que seus exércitos utilizassem as pirâmides de Giza como alvo para treino de pontaria.

Dirigido por Ridley Scott, responsável por produções inesquecíveis ao longo de quase 50 anos de carreira como Alien – O 8° Passageiro (1979), Blade Runner: O Caçador de Androides (1982), um dos meus filmes favoritos, Thelma & Louise (1991), Gladiador (2000), O Gângster (2007), Perdido em Marte (2015), O Último Duelo (2021) e muitos outros. O diretor constrói épicos como poucos, com grandiosas e impressionantes cenas de batalha. Em Napoleão, a ascensão e queda de Bonaparte nos altos escalões do governo francês é intercalada por importantes conflitos como o cerco de Toulon, as invasões à Rússia e a investida contra os ingleses em Waterloo.

O roteiro de David Scarpa traz um protagonista nostálgico, constantemente avaliador da própria vida, narrador de cartas sentimentais e dependente emocionalmente da esposa. Tecnicamente excelente, a fotografia de Dariusz Wolski aposta em sequências que enfatizam paisagens belíssimas e no vermelho-sangue das batalhas. Porém, o filme dilui as competentes cenas de ação em uma montagem confusa, que apresenta a vida de Napoleão de forma apressada e sem o devido contexto.

Com duas horas e meia, já foi anunciado um corte do diretor com 4 horas de duração que será exibido no streaming, o que explica os cortes na edição. Aliás, a trama foi bastante criticada no que diz respeito aos dados históricos retratados no filme, no entanto, a precisão histórica não pareceu uma preocupação para Ridley Scott. Prefiro deixar essa questão para os historiadores, meu assunto aqui é apenas o cinema.

Entre glória e fracasso, Joaquin Phoenix apresenta um homem falho e humano, que, entre estratégias brilhantes contra britânicos e russos, encontrou na esposa o relacionamento que assombrou sua vida. Afinal, o fato de Josephine não conseguir lhe dar um filho, um símbolo da continuidade de um império, desempenhou um papel fundamental na relação entre os dois. A química entre Phoenix e Vanessa Kirby é perfeita, com a atriz roubando a cena e sendo um dos grandes destaques da produção.

“França, exército e Josephine”, foram as últimas palavras proferidas por Napoleão Bonaparte antes de morrer. Possivelmente, as únicas três coisas que amou na vida. O filme faz questão de trazer essa passagem ao término de Napoleão, resumindo a produção nessas três palavras.

Em cartaz, Napoleão retrata o líder e estrategista militar com um olhar nostálgico e humanizado e, portanto, com falhas. Um épico que merece ser visto, preferencialmente, no cinema.

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Luiz Carlos Freitas lança novo romance: Confissões de um cadáver adiado

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O escritor e jornalista Luiz Carlos Freitas autografa na próxima quinta-feira (30), a partir das 18, na Livraria Mundial, seu novo romance: Confissões de um cadáver adiado. Freitas mergulhou no trabalho durante um ano até bater o ponto final.

O romance tem como ponto de partida e chegada a própria vida do autor, que sobreviveu a uma sentença que parecia de morte.

O prefácio fala por si:

Realidade e ficção na hora da morte Amém!

Sou filho do povo pobre e escravizado, a literatura me libertou e salvou. Perambulei por aqui e ali, encontrei guarida, força e sobrevivência financeira no jornalismo, oásis e alegria no ofício de escrever romances de cunho social, em paralelo, nas horas roubadas ao lazer e ao convívio familiar. Escrever me bastava, ser famoso e ganhar dinheiro não me atraia – expulsar fantasmas íntimos era o objetivo. Até que, no final de abril de 2011, ocorreu o que eu previa desde quando perdi meu pai, em 1973, aos 43 anos, vitimado por câncer no estômago e metástase no fígado.

Eu trabalhava na conclusão do romance MoriMundo e, em função de desconforto gástrico, fui me consultar. Desconfiança do médico, endoscopia, diagnóstico de enfermidade anunciada: tumor maligno de 2,5 cm (a mesma doença paterna) no Piloro (parte do estômago). Solução? Cirurgia. Pra ontem! Fui operado dia 13 de maio de 2011. Tudo certo! Extraíram o tumor e parte do estômago – deram-me como curado. Milagrosamente. Sem metástases. Tirei o prêmio da Mega Sena. Hurras! Vivas! Safei-me. Em julho dispensei o auxílio-saúde do INSS, voltei ao trabalho e à conclusão do MoriMundo, com a responsa de retornar a consultar-me com o oncologista em novembro, já com a tomografia em mãos.

Terminei o livro e o publiquei em setembro daquele ano. Ufa! Em novembro fiz a “Tomo” e me apresentei ao médico, pacificado, tranquilo, sem nada a temer. Choque! De alta voltagem! O cara leu o laudo do exame e me disse na lata: Problemas! Novo tumor no estômago, outro no pâncreas, um terceiro no baço e necrose no fígado. Puta… Balancei. No pâncreas! Tremi, me senti mal, meu mundo caiu, pensei: É o fim, prezado Freitas. Deu pra ti, camarada! O que temia há 40 anos se tornou realidade. Dei um tempo. Recuperei-me. E perguntei ao oncologista: Quanto tempo de vida? Entre seis meses e dois anos! Respondeu na hora, insensível e habituado às dores alheias. O que devo fazer? Extirpar os tumores por meio de cirurgia, a fim, talvez, de prolongar a vida, respondeu: Tchau e benção!

Dei entrada ao hospital dia 1º de janeiro de 2012, com cirurgia marcada para a manhã seguinte. No íntimo se digladiavam a esperança, a desesperança, o medo e um vago sentimento de aceitação do inevitável. Fiquei novehoras na mesa de cirurgia. Extraíram o tumor e o que restava do estômago, a cauda e a cabeça do pâncreas, o baço, e rasparam a necrose do fígado. Acordei e percebi que continuava no mundo dos vivos. Por pouco tempo. Deu rolo. Intercorrências nas cirurgias. Abriram-me mais cinco vezes consecutivas e instalaram um dreno no fígado para filtrar o excesso de bílis. Fui indo, dois, três dias… Bactéria estava à toa na vida e decidiu infectar-me.

Peguei infecção hospitalar das bravas. Dê-lhe litros de antibiótico e parará. A coisa piorou, choque séptico, falência de órgãos múltiplos… Adeus mundo! Quinze dias em coma! Caixão e sepultura prontos, família conformada, médicos nem aí para mais um caso perdido (aqui é força de expressão, “licença poética”). Acordei! Vi três rostos em forma de santa – não lembro a ordem: minha mãe, minha companheira, minha irmã caçula. Acordei do coma para espanto geral – milagre! –, permaneci três meses no hospital, perdi 30 quilos, voltei pra casa – milagre! A enfermidade foi superada, estou limpo  há 11 anos e 25 dias, completados hoje, 26 de setembro de 2023. Não tenho estômago, partes do pâncreas, o baço, a vesícula, a aparência e a energia de outrora…

Nesses quase 12 anos de recuperação física e mental, ganhei sobrevida, 15 quilos (meu peso oscila entre 52 e 55 Kg), paz, tranquilidade, tempo para escrever, certa lucidez, aposentadoria por invalidez, uma coluna política três vezes por semana no centenário Diário Popular (desde 2014 até dezembro de 2020), e uma vida praticamente normal – sem sequelas graves. Ainda que sobre mim paire a sombra do medo da recidiva. Entre 2014 e 2015 escrevi o romance Homo Perturbatus, publicado em 2016, reeditei Amáveis inimigos íntimos, em 2017, Odeio muito tudo isso, em 2019, e publiquei o romance Ninguém em 2020. Enquanto isso, Confissões de um cadáver adiado maturava na mente e no espírito, à minha revelia, esperando o momento certo para vir à luz. Comecei a escrevê-lo em maio de 2022, após necessária visita à aldeia Campelo, no Norte de Portugal, onde nasceram meus avôs paternos. Concluí a obra em março de 2023. Foi doloroso reabrir velhas feridas, descobrir outras, furtivas. Às vezes, chorava e lamentava meus erros, geralmente a melancolia, a nostalgia e a culpa ditaram o ritmo e as palavras. Fui em frente!

Confissões de um cadáver adiado não é um manual de superação da enfermidade – longe disso. Mas é testemunho inequívoco de que o diagnóstico de câncer – mesmo os considerados irremediáveis – já não é sinônimo de finitude. Tampouco tem a pretensão de “colonizar” o outro, como diz Saramago. O objetivo da obra é compartilhar experiências, plantar esperança, mostrar a ambiguidade, a imperfeição e a mesquinhez do ser. Há outros. Diversos.  Descubra-os!

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