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Cultura e entretenimento

Os saltos da vizinha

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Desde cedo, eu me sinto atraído por pés femininos. Esguios, bem tratados, nus ou enfiados num belo calçado, eu os acho irresistíveis. Adolescente, gostava muito de um vinil que tínhamos em casa, não pelas músicas.

A capa estampava uma mulher seminua, em ambiente noir, envolvida por uma escura luz rosa, boreal, e seus pés, mais que tudo, me magnetizavam. Não eram pés perfeitos no sentido clássico, das esculturas. Discretos joanetes despontavam, mas essas saliências pareciam tornar tudo mais interessante. Não pareciam pés aptos a esforços, mas esculpidos para a luxúria e o prazer.

Há muitos anos, morando sozinho em São Paulo, eu tentava dormir quando passos num andar superior do prédio me abriram os olhos de madrugada. Era verão, e o calor era insuportável.

Toc-toc-toc para cá, tic-tic-tic para lá.

E toc-toc-toc para cá e tic-tic-tic para lá.

Aqueles sons e movimentos não sossegavam, e me mantive acordado, devaneando. Pelos primeiros, estalidos que julguei procedentes de saltos altos, e por causa do calor e da alta umidade do ar, não demorei a imaginar uma vizinha nua, apenas calçada, com o corpo coberto por centenas de minúsculos diamantes, brotando-lhe da pele firme. As ‘pedrinhas’ pouco a pouco iriam se encorpando, e então escorrendo, encontrando-se no percurso com outras, formando gemas maiores, a partir daí escorrendo, densas e decididas, até alcançarem os pés – e escoar por eles.

O tic-tic-tic me pareceram óbvios: um cachorrinho no encalço de sua dona.

No escuro, ouvindo as passadas, imaginei uma mulher cinzelada nos pesos – claro estava, pela inquietação, que vivia em desacordo com o tempo. Sua vaidade desfilaria em um domicílio decorado, de bom gosto. Mas por que saltos altos e não chinelos de lar, e tão tarde? Como ela ia e vinha, vinha e ia, sucessivamente assim, talvez se dedicasse à arrumação. Mas por que naquela hora? Não, o movimento sugeria outra coisa. Dentre as possibilidades, fiquei imaginando, supondo: uma executiva de decisões, amaciando o calçado para exuberar no dia seguinte nos corredores de uma multinacional; uma dançarina de Flamenco treinando como humilhar a plateia com as mãos retorcidas e o passo definitivo, fatal; uma aspirante a modelo seduzida pelos sonhos de jactar-se pelas passarelas de Paris, Londres, Milão, a cabeça lá no topo, inacessível. Não podia ser uma mulher comum. Isso, não podia ser. Em qualquer caso, a insônia perseguia a vizinha, e a mim, a não ser, claro, que de dia dormisse porque, à noite, ela trabalhasse. Mas de salto?

Quem era a vizinha? Ela podia ser tudo, mas com certeza tinha pés muito bem-dispostos. Afilados. Lindos. Sensuais. A situação se repetiu na noite seguinte e perdi o sono de novo. Na terceira noite, passei um bom tempo em vigília, esperando pelos toc-toc-toc. (nessa altura, os tic-tic-tic já não me interessavam). Esperei pelas noites, mas nunca mais os ouvi. Após uma semana de esperas inúteis, procurei o zelador, por quem eu soube. No tal apartamento morava um advogado de cavanhaque. O homem, que acabara de se mudar para outro prédio, costumava parar na portaria com uma poodle nos braços para conversar.

Segundo o zelador, ele gostava de alardear que descendia de uma família de aristocratas de uma cidade do Sul. O zelador não sabia o significado de “aristocrata”, mas desconfiava que tinha algo a ver com os lacinhos cor-de-rosa nas orelhas da cadelinha e a bengala que o homem usava, mesmo que não tivesse nenhum defeito nas pernas.

– Nem joanete?

– O que é joanete?

Vê só onde a imaginação pode nos levar.

Não era nada demais.

Era apenas um homem ocupado com a própria mudança.

Jornalista. Editor do Amigos. Ex-funcionário do Senado Federal, do Ministério da Educação e do jornal Correio Braziliense. Prêmio Esso Regional Sul de Jornalismo. Top Blog. Autor do livro Drops de Menta. Fã de livros e filmes.

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Cultura e entretenimento

Luiz Carlos Freitas lança novo romance: Confissões de um cadáver adiado

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O escritor e jornalista Luiz Carlos Freitas autografa na próxima quinta-feira (30), a partir das 18, na Livraria Mundial, seu novo romance: Confissões de um cadáver adiado. Freitas mergulhou no trabalho durante um ano até bater o ponto final.

O romance tem como ponto de partida e chegada a própria vida do autor, que sobreviveu a uma sentença que parecia de morte.

O prefácio fala por si:

Realidade e ficção na hora da morte Amém!

Sou filho do povo pobre e escravizado, a literatura me libertou e salvou. Perambulei por aqui e ali, encontrei guarida, força e sobrevivência financeira no jornalismo, oásis e alegria no ofício de escrever romances de cunho social, em paralelo, nas horas roubadas ao lazer e ao convívio familiar. Escrever me bastava, ser famoso e ganhar dinheiro não me atraia – expulsar fantasmas íntimos era o objetivo. Até que, no final de abril de 2011, ocorreu o que eu previa desde quando perdi meu pai, em 1973, aos 43 anos, vitimado por câncer no estômago e metástase no fígado.

Eu trabalhava na conclusão do romance MoriMundo e, em função de desconforto gástrico, fui me consultar. Desconfiança do médico, endoscopia, diagnóstico de enfermidade anunciada: tumor maligno de 2,5 cm (a mesma doença paterna) no Piloro (parte do estômago). Solução? Cirurgia. Pra ontem! Fui operado dia 13 de maio de 2011. Tudo certo! Extraíram o tumor e parte do estômago – deram-me como curado. Milagrosamente. Sem metástases. Tirei o prêmio da Mega Sena. Hurras! Vivas! Safei-me. Em julho dispensei o auxílio-saúde do INSS, voltei ao trabalho e à conclusão do MoriMundo, com a responsa de retornar a consultar-me com o oncologista em novembro, já com a tomografia em mãos.

Terminei o livro e o publiquei em setembro daquele ano. Ufa! Em novembro fiz a “Tomo” e me apresentei ao médico, pacificado, tranquilo, sem nada a temer. Choque! De alta voltagem! O cara leu o laudo do exame e me disse na lata: Problemas! Novo tumor no estômago, outro no pâncreas, um terceiro no baço e necrose no fígado. Puta… Balancei. No pâncreas! Tremi, me senti mal, meu mundo caiu, pensei: É o fim, prezado Freitas. Deu pra ti, camarada! O que temia há 40 anos se tornou realidade. Dei um tempo. Recuperei-me. E perguntei ao oncologista: Quanto tempo de vida? Entre seis meses e dois anos! Respondeu na hora, insensível e habituado às dores alheias. O que devo fazer? Extirpar os tumores por meio de cirurgia, a fim, talvez, de prolongar a vida, respondeu: Tchau e benção!

Dei entrada ao hospital dia 1º de janeiro de 2012, com cirurgia marcada para a manhã seguinte. No íntimo se digladiavam a esperança, a desesperança, o medo e um vago sentimento de aceitação do inevitável. Fiquei novehoras na mesa de cirurgia. Extraíram o tumor e o que restava do estômago, a cauda e a cabeça do pâncreas, o baço, e rasparam a necrose do fígado. Acordei e percebi que continuava no mundo dos vivos. Por pouco tempo. Deu rolo. Intercorrências nas cirurgias. Abriram-me mais cinco vezes consecutivas e instalaram um dreno no fígado para filtrar o excesso de bílis. Fui indo, dois, três dias… Bactéria estava à toa na vida e decidiu infectar-me.

Peguei infecção hospitalar das bravas. Dê-lhe litros de antibiótico e parará. A coisa piorou, choque séptico, falência de órgãos múltiplos… Adeus mundo! Quinze dias em coma! Caixão e sepultura prontos, família conformada, médicos nem aí para mais um caso perdido (aqui é força de expressão, “licença poética”). Acordei! Vi três rostos em forma de santa – não lembro a ordem: minha mãe, minha companheira, minha irmã caçula. Acordei do coma para espanto geral – milagre! –, permaneci três meses no hospital, perdi 30 quilos, voltei pra casa – milagre! A enfermidade foi superada, estou limpo  há 11 anos e 25 dias, completados hoje, 26 de setembro de 2023. Não tenho estômago, partes do pâncreas, o baço, a vesícula, a aparência e a energia de outrora…

Nesses quase 12 anos de recuperação física e mental, ganhei sobrevida, 15 quilos (meu peso oscila entre 52 e 55 Kg), paz, tranquilidade, tempo para escrever, certa lucidez, aposentadoria por invalidez, uma coluna política três vezes por semana no centenário Diário Popular (desde 2014 até dezembro de 2020), e uma vida praticamente normal – sem sequelas graves. Ainda que sobre mim paire a sombra do medo da recidiva. Entre 2014 e 2015 escrevi o romance Homo Perturbatus, publicado em 2016, reeditei Amáveis inimigos íntimos, em 2017, Odeio muito tudo isso, em 2019, e publiquei o romance Ninguém em 2020. Enquanto isso, Confissões de um cadáver adiado maturava na mente e no espírito, à minha revelia, esperando o momento certo para vir à luz. Comecei a escrevê-lo em maio de 2022, após necessária visita à aldeia Campelo, no Norte de Portugal, onde nasceram meus avôs paternos. Concluí a obra em março de 2023. Foi doloroso reabrir velhas feridas, descobrir outras, furtivas. Às vezes, chorava e lamentava meus erros, geralmente a melancolia, a nostalgia e a culpa ditaram o ritmo e as palavras. Fui em frente!

Confissões de um cadáver adiado não é um manual de superação da enfermidade – longe disso. Mas é testemunho inequívoco de que o diagnóstico de câncer – mesmo os considerados irremediáveis – já não é sinônimo de finitude. Tampouco tem a pretensão de “colonizar” o outro, como diz Saramago. O objetivo da obra é compartilhar experiências, plantar esperança, mostrar a ambiguidade, a imperfeição e a mesquinhez do ser. Há outros. Diversos.  Descubra-os!

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Cultura e entretenimento

Anatomia de uma queda, o vencedor da Palma de Ouro. Por Déborah Schmidt

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 Samuel (Samuel Theis) é encontrado morto na neve do lado de fora do chalé isolado onde morava com sua esposa Sandra (Sandra Hüller), uma escritora alemã, e seu filho Daniel (Milo Machado Graner), de 11 anos, com deficiência visual. A investigação conclui se tratar de uma “morte suspeita”, pois é impossível saber ao certo se ele tirou a própria vida ou se foi assassinado. Sandra é indiciada e acompanhamos seu julgamento que expõe o relacionamento do casal. Entre o julgamento e a vida familiar, as dúvidas pesam sobre a relação da mãe com seu filho.

Com um começo instigante, Anatomia de uma Queda coloca dúvidas na cabeça do espectador: Samuel caiu acidentalmente do chalé ou cometeu suicídio? Ou será que foi empurrado por Sandra? Ao longo de 2h e meia, o filme desenvolve sua narrativa sem pressa e de forma complexa, focada nos diálogos. A primeira parte explora a investigação e a reconstituição da morte de Samuel, enquanto que na segunda temos o julgamento, com Sandra suspeita e acusada do assassinato do marido, tendo que provar sua inocência com ajuda de Maître Vincent Renzi (Swann Arlaud).

A diretora Justine Triet acerta em cheio ao trabalhar com diferentes versões, sem nunca apresentar uma verdade definitiva e nem respostas prontas. O roteiro de Triet e Arthur Harari, seu marido na vida real, foi uma colaboração perfeita ao explorar a intimidade do casal e a relação, muitas vezes abusiva, entre eles.

Em uma das grandes atuações do ano, Sandra Hüller tem uma performance poderosa. Falando em inglês, com dificuldade em francês e sem poder falar em sua língua materna, ela passa por todas as nuances de sua personagem e, ao lado do jovem Milo Machado Graner, conferem à narrativa uma profundidade impressionante.

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e forte candidato ao Oscar, Anatomia de uma Queda é um angustiante estudo de personagens que desvenda as complexidades das relações humanas.

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